domingo, 22 de maio de 2011

A linguagem da informação

O desenvolvimento do sistema de informação para o registo electrónico de pacientes no Reino Unido, Public procurement: Only the bare bones, é mais um caso sintomático das dificuldades de desenvolvimento de sistemas de informação. Lançado com pompa e circunstância, arrasta-se agora carregando o seu manto de dinheiro.

O caso tem algumas semelhanças com o descrito em Do público e Do privado. Mas, há uma questão interessante que é levantada na notícia. O registo electrónico de pacientes é um objectivo inquestionável, que todos concordam ser necessário, mas parece não ter solução. A abordagem centralizada falhou, mas a delegação nas unidades de saúde também não parece trazer, refere um responsável, os resultados desejados.

Stephen Pinker, no seu livro How the Mind Works, defende que a linguagem é inata, é um órgão. Existe um período no crescimento humano em que esse órgão se modela para criar a linguagem. Num exemplo, adultos que têm contacto tardio, embora prolongado, com outra língua têm dificuldade em construir frases que não tenham ambiguidades, enquanto que os seus filhos criam uma língua própria (crioulo), ainda que possuindo simplificações gramaticais, por junção de elementos da língua materna e da língua exógena, e com a qual constroem frases sem ambiguidades.

A actividade dos profissionais de saúde implica uma grande responsabilidade pois das suas acções pode depender a vida humana. Frequentemente essa responsabilidade é a título individual e resulta das interacções directas e pessoais entre o profissional e o paciente. Nestas interacções a linguagem é um elemento importante e pode ganhar um carácter único, quer associado ao profissional, quer associado à sua interacção com o paciente. A tentativa de normalizar essa linguagem entre os profissionais não é uma tarefa fácil.

A definição de normas em sistema de informação também não tem sido uma tarefa fácil, embora seja percebida por todos como necessária. Tem havido duas abordagens, a abordagem centralizadora e a abordagem de consenso. A abordagem de centralizadora acontece quando uma tecnologia se torna hegemónica e fica a norma de facto. A vantagem desta abordagem é que não necessita de criar compromissos tecnológicos, pelo que frequentemente a tecnologia é mais simples. Por consenso acontecem duas situações, por um lado a tecnologia vai ter de integrar muitos compromissos, pelo que ficará mais complexa, e por si só não assegura que irá ser adoptada. O comité de normalização pode ser o local onde os vários interessados medem forças (disputa de memes).

A tecnologia existe para satisfazer as necessidades das pessoas e o seu uso, e muito em particular o uso da tecnologia da informação, está intimamente ligado à sua linguagem. Um dos aspectos centrais do desenvolvimento de um sistema de informação é a criação, ou alteração, de uma linguagem.

sábado, 14 de maio de 2011

A Face de todas as Faces

Em Agosto do ano passado, durante as férias, fui com alguma frequência a cibercafés. Ao percorrer as filas de computadores, a interface Facebook imperava na maioria, se não na totalidade, dos ecrãs. Se fosse um extraterrestre acabado de chegar ao planeta associaria o ecrã de um computador à interface do Facebook.

Recentemente, ao procurar obter informação sobre um evento que iria ocorrer em Lisboa, a forma mais fácil de a encontrar foi procurando no Facebook. Actualmente as páginas web são mais acedidas a partir de páginas do Facebook do que a partir de pesquisas no Google. 

Todos estão no Facebook, ou vão lá estar em breve. Várias organizações a que pertenço já têm página no Facebook, desde as organizações onde trabalho até aos bancos de que sou cliente. Não que o Facebook lhes permita disponibilizar melhor a informação, com maior usabilidade ou com mais detalhe, do que nos seus sites institucionais, mas é lá que as pessoas estão. E a estratégia do Facebook é que de facto todos lá estejam. O Facebook apresenta a informação do Wikipedia dentro da sua interface. A interface de programação disponibilizada pelo Facebook tem como objectivo embutir aplicações no Facebook. Por exemplo, a empresa que desenvolve o jogo Civilization já anunciou que irá brevemente ter uma versão para o Facebook. 

Há alguns anos atrás as aplicações migraram para uma interface web, ainda que perdendo alguma usabilidade, hoje estão a migrar para a interface Facebook. 

Do ponto de vista do software, a complexidade funcional do Facebook é diminuta. O seu impacto resulta de as pessoas lá fazerem login.

O Facebook é o passo mais recente da história dos sistemas de informação, cada um deles com uma empresa bandeira: o hardware (IBM), o software (Microsoft), os conteúdos (Google), e as comunidades (Facebook). O produto tem-se tornado mais intangível, e o ritmo, e duração, da mudança mais rápido. Na passagem do software para os conteúdos deu-se uma alteração drástica do modelo de negócio. Deixou de se haver uma troca comercial explícita (o software da Google é grátis). O produto são os conteúdos criados e acedidos pelas pessoas enquanto usam o software Google.

O Facebook tem 6 anos e o seu negócio é provavelmente mais volátil que todos os anteriores. É uma comunidade e está dependente dessa comunidade. 

O que surgirá a seguir? Um produto ainda mais intangível e com um crescimento ainda mais meteórico?

domingo, 8 de maio de 2011

Um macaco chamado Nicollò Machiavelli

No DigArtMedia encontrei uma referência a uma animação de uma apresentação de Evgeny Morozov sobre o impacto político da Internet.


Evgeny Morozov argumenta que também se deve tentar perceber as consequências negativos da internet. Contrapõe este argumento à ideia naive de que a tecnologia web é, por si só, um instrumento de  democracia.

Num primeiro argumento, descreve como a tecnologia web é usada para reprimir. Por exemplo, no Irão a técnica de crowdsourcing é usada para identificar opositores políticos. As fotografias de participantes em manifestações são colocadas na web e as pessoas são convidadas a identificá-los.

Num segundo argumento, ressalta a vertente da internet como instrumento de entretenimento que tem uma dimensão muito superior à vertente de intervenção social.

Concordo que a tecnologia por si só não provoca alterações, é na interligação dos aspectos sociais e tecnológicos que de facto as mudanças acontecem, mas não partilho uma visão pessimista. A perspectiva pessimista de Evgeny Morozov parece-me bastante em sintonia com a visão de George Orwell sobre a manipulação da informação descrita no livro 1984. Com efeito, quando se procura forjar entidades no Facebook para dar credibilidade a notícias, começa-se a estar próximo das técnicas maquiavélicas, descrita por Orwell, em que o governo forja o movimento de oposição para assim identificar aqueles que têm tendências oposicionistas, ainda que estas apenas sejam originadas devido ao movimento inventado pelo governo. Uma ilustração do pecado original tão caro à verdade e ao poder absoluto.

Contudo, deve-se ter uma perspectiva menos imediata sobre os efeitos da tecnologia. É também necessário olhar para outras tecnologias. Existem tecnologias que permitem a disseminação da informação e que já são usadas há mais tempo, como seja a fotografia ou o vídeo. Não é claro que a fotografia e o vídeo tenham reduzido a capacidade de alteração social. Sem dúvida que todos podem usar essas tecnologias. É possível filmar as pessoas de uma manifestação, mas na maior parte dos casos elas pretendem ser filmadas pois querem dar impacto aos seus protestos. Arriscam pagar um preço, mas se assim não fosse também não se manifestariam.

Mesmo a vertente de entretenimento pode ter impacto. As telenovelas na Índia têm alterado a condição da mulher das zonas rurais. As mulheres deixam de tolerar situações que eram ancestralmente imutáveis. A alteração provocada pelas telenovelas não tem a redenção poética do homem de Platão a sair da caverna, mas parece ser eficaz.

Em minha opinião, quando maior for a facilidade de duplicação e transmissão da informação menos capacidade existe de a controlar. Pode-se questionar, mas se observamos o que se tem passado desde que saímos de cima das árvores até aos dias de hoje, o sentido do vector parece ser claro.

domingo, 1 de maio de 2011

O cavaleiro branco do mercado

Quando era garoto havia um anúncio na televisão que me impressionava. Era o cavaleiro branco do Ajax! Impressionava-me pela sua brancura imaculada, cavalo branco, armadura branca e lança resplandecente. Talvez também fosse por causa da televisão ser a preto e branco e o cavaleiro sobressair no meio de todos aqueles cinzentos.

Desde a queda do comunismo, que o meme do mercado se tornou dominante na "pool" de memes (Da democracia e Dos genes). Tornou-se de tal forma dominante que muitas vezes o dito "mas isso é o mercado a funcionar" acaba com qualquer tentativa de argumentação.

Contudo, o mercado para funcionar pressupõe algum equilíbrio nas relações entre os agentes. Da mesma forma que quando uma planta, ou um animal, se torna dominante no seu ecossistema o acaba por destruir, e a prazo destrói-se a si mesma, também as relações de desequilíbrio entre os agentes do mercado podem levar a situações de ruptura, como por exemplo os problemas resultantes de acentuados desequilíbrios sociais.

Infelizmente, a administração pública é um agente fraco na relação de mercado. De facto, esse tem sido o tema de alguns dos posts deste blogue. A administração pública tem dificuldade em concorrer com as empresas privadas para a contratação dos melhores recursos humanos (Virar o problema do avesso), não consegue manter conhecimento acerca dos seus próprios processos (Onde pára o conhecimento), tem dificuldade em auditar a aplicação do dinheiro dos impostos (A cadeia de valor dos impostos), não consegue criar mecanismos de avaliação interna focados em objectivos que sejam percebidos pelas pessoas (Onde começa a avaliação), etc.

Recentemente, tem aumentado o número de defensores de uma solução de mercado para aquilo que tradicionalmente era público. Uma parte significativa da economia Portuguesa está ligada ao dinheiro público, aquele que resulta dos impostos, mas sendo a administração pública um agente fraco da relação de mercado temo que a sua prestação na gestão do dinheiro público não venha a ser muito diferente da actual. Poderá mesmo piorar, pois algumas situações que se venham a criar, especialmente as de desequilíbrio social, serão justificadas com "é o mercado a funcionar".

Mas será mesmo "o mercado a funcionar"? 

Para o mercado funcionar de facto a administração pública tem que ser um agente forte. Mas, como isso não se tem verificado até agora, não é por abrirmos as portas e "deixarmos entrar o mercado" que a administração pública se vai tornar num agente forte. O mercado terá dificuldade em funcionar pois o problema actual com a gestão do dinheiro público não é mais ou menos mercado.

Ou seja, é necessário criar as condições para a administração pública seja forte e defenda os interesses daqueles que pagam os impostos. Quando isso acontecer, pode-se abrir sem medo as portas ao mercado. De facto os outros agentes terão muito a temer desse agente forte, dado o volume de negócio que ele gera.

Mas, para tornar a administração pública mais forte é necessário aproximar os seus stakeholders, aqueles que pagam impostos, dos processos e decisões de gestão, quer como observadores/auditores quer como participantes activos. Os sistemas de informação poderão ter um contributo importante, pois permitem esbater as distâncias geográficas, políticas, de poder, de acesso à informação, de decisão e de comunicação. Contudo, o desafio é saber como isso pode ser conseguido através da conjugação adequada dos aspectos técnicos dos sistemas com as características sociais de quem os usa.