domingo, 27 de fevereiro de 2011

Das comunidades virtuais

Participei num painel da semana de informática do IST (SINFO) sobre Sistemas de Informação na Administração Pública. Dos vários assuntos que foram discutidos, um é particularmente importante para a pergunta sobre como é que os sistemas de informação podem aumentar a capacidade de intervenção dos cidadãos no desenho, implementação e auditoria dos projectos públicos: as comunidades virtuais.

O tema das comunidades virtuais, ou comunidades de prática, foi referido, pelo participante da AMA no panel, numa vertente de redução de custos. Alguns casos referidos foram o Wikipedia e o Directionleesgov em que grupos de cidadãos de forma (des)interessada participaram em projectos que se revelaram tanto ou mais eficazes que projectos semelhantes mais pré-estruturados e desenvolvidos com (muito) mais recursos financeiros, respectivamente a Encyclopeadia Britannica e Directgov. Para além da redução de custos que as comunidades virtuais podem trazer, devido a uma distribuição voluntária do trabalho originada pelas mais variadas razões, um outro é o caso do Google Image Labeler, as comunidades virtuais são a base de uma nova forma de participação das pessoas que é possibilitada pela tecnologia.

O sucesso das comunidades virtuais depende da mistura acertada de aspectos tecnológicos e sociais. Por exemplo, as comunidades virtuais do Facebook, do YouTube e do Wikipedia têm características diferentes. No Facebook a identidade dos membros da comunidade é credível, ainda que possam ser forjadas identidades. Isso é possibilitado pelo conjunto de funcionalidades do Facebook que levam a que sejam associadas fotografias às pessoas, não apenas pelos próprios mas também por outros. Adicionalmente, a principal forma de criação dos grupos sociais é através do conceito de amigo, ainda que no contexto Facebook o conceito de amigo tenha ganho um significado próprio, um exemplo das metamorfoses resultantes das interacções entre a tecnologia e as pessoas. Por outro lado, no YouTube as identidades estão mais próximas do avatar, em que a metamorfose possibilitada pela tecnologia é explicitamente assumida e explorada. Já no Wikipedia a identidade não é explícita no conteúdo, o conteúdo é de facto uma construção social onde se diluem as identidades que o criaram, mas fica registada (não obstante serem permitidas participações anónimas) no processo de criação. Este registo é importante para a formação dos grupos sociais do Wikipedia que são baseados no mérito da contribuição social reconhecido pelos pares.

Em suma, diferentes comunidades têm diferentes características as quais são possibilitadas por diferentes funcionalidades da tecnologia e os objectivos das pessoas que usam a tecnologia. O Facebook é uma comunidade onde se socializa, no YouTube a comunidade é quase secundária e funciona para a difusão de emoções após a visualização de um video (audição de uma música), enquanto que no Wikipedia é uma sociedade de artífices movidos por uma ideia de bem comum.

O Orçamento Participativo da Câmara Municipal de Lisboa é uma iniciativa que promove a intervenção dos cidadãos no desenho e decisão sobre projectos municipais. A iniciativa vai no caminho certo de retirar os cidadãos da ponta das cadeias de valor onde são aplicados os seus impostos. Neste caso, os cidadãos podem participar no desenho, através da apresentação de propostas, e na atribuição de recursos, através do voto em propostas.

Contudo, este exemplo mostra que não é fácil desenvolver estes projectos e que é necessário aprender com a experiência e ir afinando a relação entre a tecnologia e as pessoas. Por exemplo, a minha participação foi inicialmente motivada pelo sms de um amigo que me incentivava ao voto num projecto que tinha ajudado a conceber. Ulteriormente recebi um email de uma outra pessoa a promover o seu projecto. Uma vez feito o acesso no sítio pude ver alguma informação sobre os projectos e votar. Senti falta da comunidade virtual. Tomei conhecimento do projecto no contexto de comunidades externas ao contexto do projecto, o município de Lisboa, e uma fez que acedi ao sistema de informação não fui cativado a aderir a uma comunidade virtual e a interagir com ela, mas apenas a votar.

Não é fácil desenvolver estes projectos, se o fosse a Google já teria transformado a comunidade YouTube numa concorrente séria da comunidade Facebook. É necessário caracterizar a comunidade que se pretende ter, quais os seus objectivos e como é que tudo poderá ser possibilitado por um conjunto de funcionalidades da tecnologia, as quais terão que ser afinadas de acordo com a caracterização da comunidade pretendida.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Do público e Do privado

Há algum tempo fiz uma apresentação, numa sessão organizada pela ComputerWorld dedicada à engenharia de software, em que descrevi um caso de desenvolvimento e instalação de um sistema de informação para a administração pública.  Como muito frequentemente acontece, o projecto teve um atraso de 18 meses e o custo foi 3 vezes superior ao inicialmente orçamentado. Para além disso, quando entrou em funcionamento, originou um conjunto de situações que ficaram fora de controlo, onde aspectos sociais e tecnológicos se entrelaçaram e se tornou difícil destrinçar as causas dos efeitos.

Em traços gerais, após um custo de valor equivalente a cerca de 18 milhões de euros, o sistema foi para produção tendo como resultado que um elevado número de funcionários tiveram problemas com o pagamento dos seus vencimentos. O que se seguiu foi o envolvimento de técnicos e políticos, governo e oposição, sindicatos e media. O caso foi primeira página dos jornais, notícia nas televisões e tornou-se alvo das conversas de rua. O projecto era o primeiro, e era visto como o demonstrador, de uma nova estratégia para os sistemas de informação da administração pública, a de ter serviços partilhados.

Após a minha apresentação, perguntaram-me se os resultados teriam sido os mesmo caso o projecto tivesse ocorrido numa empresa privada. A pergunta tem uma resposta "óbvia": os resultados não teriam sido os mesmos. O projecto teria sido cancelado mais cedo, teria sido mais fácil apurar as responsabilidades, etc, etc, etc. Contudo, a resposta "óbvia" peca por dar uma visão redutora do problema, uma vez que não é trivial "privatizar o público".

Senão vejamos. O que distingue um projecto privado de um projecto público é o conjunto de stakeholders envolvidos. Em particular, um projecto público é financiado com o dinheiro dos contribuintes, o que os torna em intervenientes interessados nos resultados do desenvolvimento do sistema, em tudo semelhante ao interesse dos accionistas da empresa privada no resultado dos projectos da empresa. Contudo, existem diferenças na forma como eles, os accionistas e os contribuintes, podem intervir.

A intervenção dos contribuintes nos projectos públicos é mais indirecta que a intervenção dos accionistas nos projectos privados. Quando votam não estão a avaliar o sucesso ou insucesso de um particular projecto, ou de um conjunto de projectos, em última instância o lucro da empresa, mas sim um vasto conjunto de resultados económicos e sociais. Por outro lado, os contribuintes não podem vender as suas participações no capital público.

A solução de transformar os projectos públicos em privados, latente na pergunta, é falaciosa pois pressupõe que é possível criar projectos do interesse público em que os contribuintes não são stakeholders.

Ou seja, não é possível "privatizar o público".

É claro que este problema não se aplica apenas a projectos de desenvolvimento de sistemas de informação. Mas tem uma especial incidência no desenvolvimento de sistemas de informação pois nestes as fases de desenho, implementação e manutenção intercalam-se, dificultando a gestão e controlo do projecto. Assim, uma questão importante, que tem que ser levantada, é como desenvolver sistemas de informação onde existe financiamento público, de uma forma eficaz, e tirando partido da própria orgânica dos stakeholders envolvidos, em vez de os negar. Por outro lado, e relacionado com a questão anterior, é importante perceber como é que as tecnologias de informação podem ajudar os stakeholders localizados na ponta de uma longa cadeia de valor onde são aplicadas as suas contribuições, a ser mais intervenientes no desenho, implementação e auditoria dos projectos públicos.

É necessário fazer estas perguntas para encontrar respostas que vão ao cerne do problema.